Cachoeiro e seus mistérios: Matriz Velha, a fortaleza de Atenas



Igrejas falam e contam histórias. Por trás de suas paredes existe o discreto testemunho  da evolução humana.

Desde a Idade Média, os historiadores em especial se tornaram os melhores ouvintes de seus murmúrios silenciosos registrados pelo passar do tempo.

Em Cachoeiro de Itapemirim, a Atenas Capixaba, repousa uma das mais antiga igreja do Sul do Estado… e este historiador foi conversar com ela e ouvir seus murmúrios.

Antes de iniciar o relato desse icônico monumento, convido o leitor a usar a imaginação e descobrir a construção histórica e geográfica de nossa cidade através das Igrejas Católicas.

A Catedral de São Pedro: tem a sua frente voltada para o centro.

A Igreja Consolação: tem a sua frente voltada pro centro.

A Capelinha da Santa Casa: tem a frente voltada para o centro.

A Igreja São Sebastião: tem a frente voltada para o centro.

A única que não tem a frente voltada para o centro é a Matriz Velha… porque o Centro de nossa cidade era há mais de um século próximo ao extinto porto municipal. Atualmente seria as ruínas do Clube Yole, localizado nas imediações da Secretaria Municipal de Educação. E nesse período o Rio Itapemirim era navegável até a altura da secular igreja.

Matriz Velha, um templo sagrado, uma testemunha silenciosa da História de Cachoeiro. Um monumento com traços discretos de um forte militar.

A Matriz Velha

Na época que a Matriz Velha foi construída, Cachoeiro era uma região dominada pelos temidos índios puris, que, em um primeiro momento, não chegaram a ser obstáculo aos primeiros desbravadores, atraídos pelo ouro nas minas descobertas nas regiões compreendidas por Castelo.

A primeira incursão exploradora organizada ocorreu entre 1820 e 1825, porém existem controvérsias sobre essas incursões. E vale ressaltar que os puris poderiam naquele momento histórico se tornar uma ameaça em potencial à conquista dos rincões do nosso Sul do Estado, afinal estariam defendendo a sua terra.

A Capela Nosso Senhor dos Passos ou Matriz Velha era de propriedade do capitão Francisco de Souza Monteiro e de dona Henriqueta Rios de Souza, que também era proprietária da fazenda Monte Líbano.

A capela começou a ser construída em 1° de junho de 1879 e foi concluída em 1882.

Os construtores foram Manoel Caetano da Costa e Antonio Caetano da Costa.

Os altares de madeira foram entalhados por volta de 1882 e 1884 pelo mineiro Domingos Gonçalves de Abreu e Lima.

Foi inaugurada em 10 de fevereiro de 1884 pelo padre Camilo Barcil.

A influência militar

A Matriz Velha possui em sua composição sacra, estilo barroco, porém o que me chamou a atenção enquanto historiador e pesquisador foi o responsável por construir essa capela, o já mencionado capitão Francisco de Souza Monteiro, ou seja, o mesmo detinha a patente de capitão, o que sugere que ele era um militar ou um latifundiário.

E na hipótese de ser ambos, ainda temos a influência da Igreja, como a ordem dos jesuítas, que alguns acreditam ser os desbravadores de Castelo. Os jesuítas eram chamados de soldados de Cristo devido ao intenso treinamento militar que eles se submetiam para desbravar o Novo Mundo.

Logo, a influência militar na construção da Matriz Velha pode ter sido uma realidade, discreta, mas ainda assim plausível. Fato corroborado pelo iminente ataque de índios puris, que faziam da Igreja uma perfeita fortaleza.

A fortaleza

A Matriz Velha não possui janela laterais baixas, e sim janelas laterais altas. A função primordial claro seria a entrada de luz natural, porém a função militar seria rechaçar algum ataque. Um perfeito “ninho” de atirador.

E o fato de serem janelas estreitas dificultava o ataque de flechas incendiárias ou outros ataques com tochas ou até mesmo armas de fogo. E também dificultavam assaltos para tomar a edificação com o uso de ganchos e cordas, caso tentassem escalar suas paredes.

Vista da lateral da Matriz Velha, com janelas altas e estreitas, um perfeito “ninho” de atiradores. Foto: Arquivo pessoal

O acesso interno a essas janelas altas seria feito por passadiços ou passarelas de madeira elevadas, que semelhante a um forte, daria mobilidade para atiradores e também posição elevada estrategicamente privilegiada para alvejarem inimigos.

Os passadiços, plataformas elevadas que dão  acesso às janelas. Esses corredores cobriam quase toda a extensão interna da Igreja. Foto: Arquivo pessoal

As paredes da Matriz Velha são grossas e espessas, a porta de madeira de lei pesada e maciça. A matriz ainda conta com duas torres de sino com uma visao de 360 graus do relevo, o que conferia um estratégico posto de sentinela, além de uma visão privilegiada de todo o paço onde ela foi construída, além de permitir monitorar ao longe o acesso de embarcações.

Mais passadiços, dessa vez próximos ao altar. Foto: Arquivo pessoal
Detalhe das torres de nosso “forte”, com janelas estreitas e visão de 360 graus. Foto: Arquivo pessoal

Outro fato sobre as torres é que a torre lateral esquerda abriga três sinos, desde 1886 sagrados pelo bispo dom Pedro M. de Lacerda.

A teoria

Muitos leitores devem estar se perguntando de onde veio a teoria de a matriz também possuir uma função bélica. A resposta vem da bravura inspiradora dos desbravadores do Novo Mundo, muitas das vezes retratadas no cinema.

No Brasil, no século passado, por exemplo, presenciamos o surgimento do movimento anti-republicano conhecido como Messianismo, cujo líder Antônio Conselheiro amealhou centenas de seguidores, resultando em uma resposta enérgica e violenta do governo federal para suprimir essa revolta. No final, a última linha de defesa de Antônio Conselheiro era uma igreja. Os revoltosos se refugiavam em um forte cujo solo era sagrado. Porém, em número inferior e também com menos recursos, sucumbiram à investida das tropas federais.

A profecia de Antônio Conselheiro se cumprira. O sertão virou mar (de sangue) e o mar virou sertão (muitas famílias se juntaram ao beato).

Em filmes de faroeste é muito comum ver o povo se refugiando em igrejas, após sofrerem ataques de índios e bandoleiros.

E ainda aqui no ES temos o Convento da Penha, com vista estratégica da baía de Vitória.

E mais: além dos jesuítas terem treinamento militar, também tínhamos os templários, guerreiros cristãos que foram grandes construtores de igrejas e abadias em forma de fortaleza.

A própria Igreja Católica é altamente hierarquizada, e muitas das vezes suas regras podem ser ainda mais rígidas que a dos próprios militares.

A doação

A Matriz Nosso Senhor dos Passos, embora construída por iniciativa privada, pertencia à Diocese do Rio de Janeiro. Em 1899 foi transferida para a Diocese do Espírito Santo. O doador da capela era pai do primeiro bispo cachoeirense, dom Fernando de Souza Monteiro e do governador do Espírito Santo Bernardino de Souza Monteiro (cuja história é marcada por revoltas armadas, reforçando ainda mais o caráter belicista da família).

Conclusão

De forma discreta é possível notar a influência militar na construção dessa magnífica estrutura. Uma obra praticamente atemporal e testemunha secular de fé, coragem, pioneirismo e História.

A Matriz Velha foi restaurada em 1998, pela SECULT ES(Secretaria de Estado e Municipal de Cultura do Espirito Santo)com auxílio de profissionais de Ouro Preto. Ela, caros leitores, merece todo carinho e respeito de nós, cachoeirenses, independente do credo religioso, pois é um verdadeiro tesouro arquitetônico e artístico. Ela é de todos nós. É orgulhosamente a  fortaleza da Atenas Capixaba.

Sobre o autor: Marcio do Nascimento Santana é historiador, montanhista e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Cachoeiro de Itapemirim.





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